O Ministério Público Federal (MPF) ingressou com ação civil pública para que o Município de Uberlândia e a União sejam obrigados a retomar, em até 10 dias, a prestação dos serviços de saúde à população em situação de rua por meio da estratégia “Consultório na Rua”.
Essa modalidade de assistência à saúde foi instituída em 2011 pela Portaria nº 122 do Ministério da Saúde e faz parte da Política Nacional para a População de Rua instituída pelo Decreto nº 7.053 de 2009. Ela prevê que equipes multiprofissionais realizem atividades nos locais onde forem encontradas pessoas em situação de rua, de forma itinerante, desenvolvendo com elas, ao longo do tempo, uma relação de confiança e cumplicidade, fundamental para garantir o acesso aos serviços de saúde a esse grupo populacional, que se encontra em condição de vulnerabilidade e com os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados.
Para viabilizar o atendimento e manter a equipe do Consultório na Rua, a União repassava ao município um incentivo financeiro no valor de R$ 27.300 mensais. Em outubro do ano passado, Uberlândia desabilitou o serviço e a União interrompeu o repasse.
“Quando questionado, a justificativa do Município para a desabilitação do serviço foi a de que não teria encontrado três profissionais de ensino médio para composição da equipe do Consultório na Rua, conforme os parâmetros estabelecidos pelo Ministério da Saúde”, afirma o procurador da República Leonardo Andrade Macedo. “Mas essa alegação caiu por terra quando constatamos que, apenas no ano de 2019, houve um incremento de 1.223 profissionais na rede de saúde municipal, não sendo plausível que não se encontrasse entre esses os três profissionais exigidos para a composição da equipe”.
Pandemia – A ação lembra que tal medida contrariou “Nota Técnica do Ministério da Saúde, que reforça a importância da manutenção do Consultório na Rua no período da pandemia de COVID-19, bem como o próprio Plano Municipal de Saúde 2018-2021”.
Nota Técnica de março de 2020, expedida pela Secretaria de Atenção Primária à Saúde do Ministério da Saúde, já destacava que, no contexto da Covid-19, “a população em situação de rua apresenta maior condição de vulnerabilidade, visto que se trata de grupo populacional heterogêneo que tem em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória. Consequentemente essa população específica encontra-se nos grupos de maior risco de morte devido às doenças mais recorrentes, quais sejam: tuberculose, sofrimento psíquico (saúde mental), IST/HIV/AIDS, gestação de alto risco, doenças crônicas (diabetes, hipertensão arterial, hanseníase), consumo e dependência de álcool e outras drogas.”
Além disso, a estratégia Consultório na Rua também faz parte do Plano Municipal de Saúde de Uberlândia para o período 2018-2021, que prevê como uma das ações de Qualificação da Atenção Primária à Saúde (item 5.1.3) “Manter Equipe Consultório na Rua, integrada em rede com recursos adequados”.
No entanto, o próprio Conselho Municipal de Saúde informou que, embora a medida contrarie o previsto no Plano Municipal de Saúde, a desativação do Consultório na Rua não foi submetida à discussão e deliberação daquele órgão de controle social.
“Portanto, a interrupção na prestação dos serviços de Saúde por meio do Consultório na Rua é completamente injustificável, ainda mais quando se considera que a União repassa aos municípios, via transferência regular e automática do Fundo Nacional de Saúde, o correspondente incentivo financeiro de custeio mensal. Ou seja, o Município não pode cogitar sequer de dificuldades de natureza orçamentária-financeira”, declara o procurador da República, para lembrar que “Tal medida está totalmente desconectada da realidade atual de combate à pandemia, agravando o risco e prejudicando gravemente a população em situação de rua justamente em um momento de grave crise sanitária, social, econômica e institucional”.
Conforme boletim epidemiológico do último dia 12 de setembro, o município de Uberlândia apresenta 23.791 casos positivos de COVID-19 e 475 óbitos confirmados, com ocupação de 84% dos leitos de UTI na rede municipal.
Atendimento nos demais serviços de Saúde – A ação ainda contesta a alegação feita pelo Município de que estaria atendendo a população em situação de rua nos demais serviços municipais da Atenção Primária em Saúde. Isso porque, apesar de instada a fazê-lo, a Secretaria Municipal de Saúde não apresentou quaisquer documentos que comprovassem tal atendimento, como os relatórios e respectivos prontuários.
Para o MPF, certo é que “embora, de forma geral, os serviços de saúde estejam disponíveis na rede de Atenção Primária do Município, na prática, em razão de suas características e de sua extrema condição de vulnerabilidade, a população em situação de rua não tem acesso a esses serviços. O atendimento adequado a essa população exige atividades de campo, mediante busca ativa, e a criação de uma relação de confiança entre os profissionais e as pessoas atendidas, o que só é possível por meio da estratégia do Consultório na Rua”.
Além disso, “em razão de sua alta mobilidade e da impossibilidade de isolamento social, aliadas às precárias condições de higiene e nutrição, a população em situação de rua está naturalmente sujeita a um maior risco de contágio de doenças infecciosas, como a COVID-19”, o que obviamente também pode impactar no restante da população”, registra a ação.
“No contexto de um cenário de transmissão comunitária da Covid-19, é óbvio que a transmissão do vírus não atinge apenas a população em situação de rua. Portanto, não há como priorizar o atendimento a uma determinada parcela da população excluindo essa outra parcela mais vulnerável e até invisibilizada pelas políticas públicas. Os efeitos dessa exclusão podem ser sentidos por todos”, alerta o procurador da República.
Dano moral coletivo – No dia 06 de agosto passado, o Ministério Público Federal chegou a provocar o Secretário Municipal de Saúde a se manifestar sobre a possibilidade de recomposição da equipe do Consultório na Rua e sua reabilitação no âmbito do Ministério da Saúde, a fim de resolver a questão de forma extrajudicial e consensual. Houve pedido de prorrogação do prazo, que foi concedida, mas passado mais de um mês desde o último contato, não houve qualquer resposta.
Segundo a ação, a “conduta ilícita dos requeridos vem causando danos diretos à população em situação de rua e colocando em risco a segurança, a vida e integridade de toda a coletividade, gerando, assim, o dever de indenizar o dano moral coletivo, conforme os arts. 5º, V e X, da CRFB 1988, art. 84 do Código de Defesa do Consumidor, e art. 186, 927 e 944, do Código Civil”.
MPF